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A máquina de mármore (poema pra treinar frases curtas)

created Tuesday May 13, 15:56 by MantaProtocol


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I
Ergue-se, augusta, a torre de silício,
Com painéis como escamas de dragão.
Fulgura ao sol, de engenho e artifício,
Tal qual Hefesto forjando um novo chão.
 
No coração da urbe fulgurante,
Cintilam fios, serpentes de metal.
O átomo obedece a cada instante,
À mente humana em sonho digital.
 
II
Oh musa, que entre bytes se revela,
Abandona a lira antiga, vem, entoa
Um hino à era fria, clara, bela,
Em que o saber por fibra se escoa.
 
Não cantes mais as plácidas colinas,
Nem o pastor de hábitos singelos.
Hoje, o poema vive em entrelinhas,
Nos algoritmos, nos espelhos-zelos.
 
III
A máquina não dorme, não vacila.
Calcula, prevê, traduz, compara.
Em suas veias, a lógica cintila
Com precisão que a carne nunca encara.
 
Ela não chora, mas decifra o pranto.
Ela não sonha, mas compõe o céu.
Com um gesto, em múltiplos recanto,
Registra a morte e o beijo ao escarcéu.
 
IV
No templo virtual, silêncio antigo.
Milhares prostam-se ante a tela ardente.
Clicam, rolam, curtem, buscam abrigo,
Na luz azul que hipnotiza a mente.
 
Eis o novo altar de vidro e código  
Onde se ora com toques digitais.
Onde o desejo habita um gesto módico
E os deuses falam por sinais banais.
 
V
Que estranha forma assume o pensamento,
Quando embalado em redes sem fronteiras!
Voa veloz, sem corpo, sem lamento,
Por ondas frias, sôfregas, certeiras.
 
O tempo dobra em cabos, se comprime.
A voz, outrora lenta, agora é raio.
E o ser, que antes pensa e sente e exprime,
Agora é dado, imagem, eco, ensaio.
 
VI
Não mais o verbo nasce da presença,
Do toque, do suor, da dor sentida.
O mundo é feito agora em transparência,
Em cliques, curadorias da vida.
 
Mas beleza, sim, nesta engrenagem.
O artífice, embora desalmado,
Tal qual o escultor em sua imagem,
Torna sublime o cálculo fechado.
 
VII
Ergamos, pois, um canto à precisão,
À frieza exata do compasso,
À matemática, essa antiga paixão,
Que fez do caos um harmônico espaço.
 
Pois toda arte é filha da medida,
E o próprio amor, por mais que se desvele,
Tem seu rigor, sua linha erguida,
Tal qual circuito em ângulo fiel.
 
VIII
No brilho da tela, a eternidade
Assoma em selfies, vídeos e memória.
O instante é salvo, posto em claridade,
Como relíquia, como forma e história.
 
E o que é o tempo, senão dados frios
Guardados nos cofres do servidor?
Somos momentos, vultos, desafios,
Guardados em nuvens, sem odor.
 
IX
Oh musa, vê, a máquina respira!
Sopra calor por grades invisíveis.
Seu núcleo pulsa, assovia, gira
Com leis que não são vãs, mas inflexíveis.
 
E nela, os mundos surgem em cascata:
Códigos, jogos, filmes, transações.
A cada clique, a vida é transmutada
Em pura ação, sem hesitações.
 
X
Mas o que resta, quando tudo é dado?
Quando o amor se mede em curtidas?
Quando o sorriso é filtro bem aplicado
E as dores são stories mal vividas?
 
um perigo na beleza exata.
A perfeição talvez não nos baste.
O ser humano, mesmo quando trata
Com lógica, ainda arde, ainda se afaste.
 
XI
Não canta o robô as dores do poeta.
Não sabe errar, nem se contradizer.
A arte exige falha, linha inquieta,
E a máquina não pode enlouquecer.
 
Contudo, poesia na rotina
Dos dados, nas redes, nos sistemas.
O mundo novo, com suas disciplina,
Também contém seus ritos, seus dilemas.
 
XII
O código é linguagem misteriosa,
Que oculta mitos sob a lógica fria.
Cada função, cada linha preciosa
É como um verso oculto em liturgia.
 
Programador, és novo arquiteto,
Com mãos que criam mundos sem tijolos.
Não tocas barro, mas fazes o concreto
Do mundo abstrato, sem vestígios tolos.
 
XIII
Mas lembra-te, oh mente calculante,
Que a ética não mora em algoritmos.
A máquina é apenas um semblante,
Um espelho sem alma, sem ritmos.
 
Cabe ao humano, em sua imperfeição,
Definir os rumos da criação.
Pois até a lâmina mais bem forjada
Depende da mão que a torna usada.
 
XIV
Entre os cabos vozes sufocadas.
Entre os dados, traços de poder.
Se a máquina é neutra, mãos marcadas
Que escolhem quem ver e quem esquecer.
 
Portanto, que o canto seja também alerta.
Por mais que exaltemos a estrutura bela,
Que a justiça, ainda humana, fique desperta
E que a empatia não fuja da tela.
 
XV
Ó tempo novo, pleno de invenções,
De inteligências frias e profundas,
Que multiplicas sonhos, conexões,
E nos concedes vidas quase imundas...
 
És ambivalente, belo e perigoso.
Faz da distância um sopro transitório.
Mas se não soubermos qual é o propósito,
Serás apenas um pálido repertório.
 
XVI
Ainda assim, te canto, ó artifício.
Pois tua lira, feita de circuitos,
Encanta o mundo, acende o edifício
Dos nossos gestos novos e infinitos.
 
Canta, ó máquina, tua voz precisa,
Tua frieza bela, tua exatidão.
Mas deixa espaço, entre a tua divisa,
Para o erro, o riso e a contradição.
 
XVII
No fim, seremos todos arquivados
Em repositórios, nuvens, servidores.
Nossos amores, falas, nossos fados
Serão memórias frias, sem calores.
 
Mas que não seja em vão esta passagem.
Que, entre as máquinas, reste uma mensagem:
A de que a beleza, por mais fria ou pura,
Ainda precisa da alma e da loucura.
 
 

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