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Pensamento e atualidade de Aristóteles

created Dec 3rd 2015, 04:55 by gfox66


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1a parte
 
  
 
Nesta primeira aula, serão colocadas as premissas e métodos que vamos desenvolver em seguida. Tudo o que vamos expor aqui é baseado não nos textos de Aristóteles como nos dos autores de estudos aristotélicos relacionados no Documento Auxiliar II.
 
O esquema-padrão
das introduções
a Aristóteles.
 
Existem muitas maneiras de fazer uma exposição introdutória da obra de um filósofo. Mas, com relação a Aristóteles, existe uma certa fórmula que é adotada em quase todos os livros: colocar uma introdução biográfica, uma segunda introdução de ordem filológica que a composição da bibliografia do autor, e depois a exposição de sua filosofia de acordo com uma ordem que está consagrada mais de dois mil anos:
 
1) Obras e doutrinas lógicas.
 
2) Obras de Física de um lado a filosofia da natureza de um modo geral, na qual o que hoje chamamos de Física seria apenas uma parte, abrangendo também Geografia, Geologia, Astronomia, Meteorologia etc.; de outro a Biologia, com a Psicologia como uma sua parte ou extensão.
 
3) Tratado de Metafísica por ele chamada de Teologia, e também de Ontologia e Filosofia Primeira.
 
4) Ética e Política.
 
5) Poética e Retórica.
 
Muitos livros sobre Aristóteles seguem na sua exposição rigorosamente esta ordem. É a que foi adotada no século I a.C. para a ordenação dos escritos aristotélicos por Andrônico de Rodes.
 
Desde o momento em que essa ordem se consagrou, foi adotada não para todas as reedições dos escritos mas também para a maioria das exposições da filosofia aristotélica.
 
Sempre que um esquema desses se consolida, vira uma espécie de cacoete e nos induz a ver as coisas sempre pelos mesmos lados. Aristóteles estaria completando, se vivo, 2400 anos de idade, tempo mais que suficiente para se consagrarem a seu respeito erros e confusões de toda espécie que, sacramentados pela antiguidade, podem se tornar verdades inabaláveis.
 
A filosofia,
atividade da consciência
individual.
 
À medida que passa o tempo e que as várias tradições vão cristalizando a nossa maneira de ver o filósofo, se torna mais difícil sair de dentro delas para encarar esse filósofo com uma visão pessoal. Ora, em filosofia tudo o que não é visão pessoal não tem valor nenhum. Se alguma coisa que distingue a filosofia das demais formas de saber, é o caráter radicalmente pessoal, individual das suas especulações. Nisto, ela difere totalmente de todas as demais formas de conhecimento, nas quais o consenso coletivo tem uma importância decisiva. Não concebemos uma ciência, no sentido em que hoje se emprega esta palavra, exceto como um sistema que vai sendo construído aos poucos, com contribuições de várias proveniências, e que vai se fechando numa espécie de edifício, num sistema das verdades científicas admitidas ou consagradas. De modo que, se num determinado momento um indivíduo enuncia uma tese, uma teoria que contrarie flagrantemente o sistema admitido, ele terá de argumentar muito bem, pois estará desafiando o consenso, compartilhado por toda a comunidade científica. É claro que nem todas as teorias científicas admitidas gozam de um consenso assim unânime, mas em geral é assim que as coisa se dão nesse setor.
 
Se formos para outro setor do conhecimento a religião —, esta também é uma elaboração coletiva, e toda e qualquer prática religiosa subentende que um certo corpo de crenças é aceito como verdade uniformemente por toda a comunidade dos crentes. Subentende-se que o dogma católico, judeu, mussulmano etc. é entendido e admitido de maneira mais ou menos uniforme. O dogma é uma interpretação consensual do sentido das Escrituras.
 
Sócrates e o protesto
da consciência individual
ante o consenso social
 
Comparada ao que hoje chamamos de ciência, ou de religião, a filosofia se destaca por não haver nela a necessidade desse tipo de consenso e por requerer uma participação individual muito mais profunda. Desde o início, vemos que a filosofia nasce como o protesto de um indivíduo contra um consenso estabelecido. Este indivíduo chama-se Sócrates. Ele defronta-se com um conjunto de crenças e hábitos mentais e intelectuais, admitidos como válidos no seu meio e cultivados pelos indivíduos que eram a máxima expressão da cultura do tempo aqueles que hoje chamamos sofistas. Eram professores de Retórica que iam de cidade em cidade procurando os jovens membros da classe dominante para lhes ensinar a arte da Retórica, com a qual poderiam ingressar na carreira política.
 
A educação grega consistia fundamentalmente de três coisas: ginástica, música e retórica. O ensino da retórica, prosseguindo durante séculos, tinha consagrado na classe dominante grega uma série de convicções e hábitos mentais. Um indivíduo isolado, que não dispõe de qualquer projeção pública peculiar, não exerce cargo público, não participa da política, que era apenas um soldado aposentado e se dedicava à arte da construção civil, um pequeno empreiteiro este é Sócrates. Na juventude tinha sido mais ou menos famoso como soldado, algo como um herói de guerra. Mas, na maturidade, era um mero cidadão privado, que não era professor de nada, que não era político e estava rigorosamente fora da vida intelectual da época. É este indivíduo que, falando exclusivamente em seu próprio nome e sem poder alegar nenhuma autoridade, começa a questionar certas convicções estabelecidas, e não questiona, mas desenvolve um método para interrogar as crenças estabelecidas e mostrar, ou que são contraditórias, ou que não têm base suficiente. O sentido da frase famosa "Só sei que nada sei" é irônico significa que, se ele nada sabe, os outros sabem menos ainda.
 
Duas maneiras
de dar coerência
às nossas crenças.
 
A filosofia surge desse esforço de um indivíduo em particular para dar coerência às suas crenças. Podemos estabelecer a coerência de um corpo de crenças por duas maneiras contrárias. Uma delas é quando, pela prática repetida e pelo hábito, vamos harmonizando estas crenças com os nossos atos, com nossos hábitos e expectativas, também com as expectativas e hábitos dos outros e sobretudo com a nossa auto-imagem. De modo que, estando habituados a viver dentro dessas crenças, elas se tornam coerentes com o tom geral da nossa vida e por isto nos parecem coerentes em si mesmas e coerentes umas com as outras. Isto é, da unidade da nossa auto-imagem costumeira deduzimos erroneamente a unidade das nossas crenças.
 
A outra maneira de coerenciar as crenças é a filosófica. Significa confrontá-las teoricamente umas com as outras. Quando começamos a fazer isto, vamos ver que a nossa prática se assenta numa série de pressupostos contraditórios, que se desmentem uns aos outros. Isto, evidentemente, pode nos causar um certo espanto e nos deixar inseguros, derrubando uma auto-imagem tão laboriosamente construída.. De fato, Sócrates deixava as pessoas tão inseguras, que o compararam a uma enguia, um peixe-elétrico. Quem encostava nele levava um choque, pois ele demonstrava que as crenças mais comuns, tidas como coerentes e admitidas por todos, eram contraditórias umas com as outras e frequentemente autocontraditórias, quer dizer, intrinsecamente absurdas. Ele mostrava, por trás de uma ordem prática, uma desordem teorética.
 
Como a contradição se introduz nas crenças que sustentam a nossa prática? Através da nossa própria vontade. Quando queremos acreditar em determinadas coisas, porque nos interessam ou nos fazem bem psicologicamente, tratamos de forçar as idéias para que convivam umas com as outras, ainda que, pelos seus conteúdos respectivos, sejam de fato incoerentes entre si. Fazemos isto constantemente. Quem se submeteu a algum tipo de psicanálise tem um idéia de até que ponto podemos mentir a nós mesmos, para sustentar um falso sentimento de coerência e integridade da nossa auto-imagem, justamente nos momentos em que nossa personalidade está mais dividida. Quanto mais incoerentes são nossas crenças, maior é o esforço de nossa vontade no sentido de dar um simulacro de coerência àquilo que não tem. Ora, se um indivíduo consegue fazer isto, quanto não conseguirá a coletividade? Nesta, você recebe o reforço de seus semelhantes e é protegido pela idéia de que, se erra, não erra sozinho, e de que tantos juntos não poderiam errar de maneira alguma. O auto-engano coletivo é mais eficiente do que o individual.
 
Quando vemos, no decurso do tempo, as mudanças de orientação da mentalidade coletiva, surpreendemo-nos com a sua volubilidade, com a sua leviandade. Como as pessoas mudam rapidamente de crenças sem sequer examinar as anteriores! Quantos ex-comunistas não gerou a queda do muro de Berlim, que, sem se sentirem abalados, giraram o botão da sua máquina de opinar e saíram com um novo discurso, falado com o mesmo tom de certeza do anterior discurso comunista? O sujeito abandona uma crença por outra sem um exame pessoal, mas apoiando-se em um novo consenso público. O consenso também tem suas mudanças, oscila entre a força do hábito e a força da moda, e quando simplesmente nos acomodamos às novas modas temos a impressão de estar nos renovando ou tornando mais autênticos, mas na verdade consenso é consenso, é sempre coletivo e fundado na imitação. Sempre que nos apoiamos no consenso público, velho ou novo, recorremos a uma espécie de reforço psicológico que ajuda a dar uma impressão de coerência àquilo que não tem nenhuma.
 
É justamente face a esse consenso coletivo que pode ser político, religioso, ideológico, moral etc. que se levanta a exigência filosófica. Ela parte de uma necessidade interior, de um impulso de honestidade fundamental no sentido de dar às idéias uma coerência efetiva e uma fundamentação mais sólida. É essa exigência de uma fidelidade mais profunda à nossa consciência de veracidade que é representada por Sócrates.

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