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Text Practice Mode

DEIXA O ALFREDO FALAR!

created May 13th 2020, 19:24 by VinciusFigueira


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A ARTE brasileira da conversa não é de fácil aprendizado. Como toda arte, exige antes
de mais nada uma verdadeira vocação. E essa vocação se aprimora ao longo do
caminho que vai da inocência à experiência. Como em toda arte.
Para princípio de conversa, distinga-se: quando falo em conversa, não estou me
referindo à lábia, à astúcia, à solércia do brasileiro no passar a bicaria e vender o seu
peixe. Falo precisamente no bate-papo, erigido numa das mais requintadas instituições
nacionais.
Mas por que arte brasileira? Os outros povos por acaso não batem papo? A própria
expressão, brasileiríssima, corresponde em inglês exatamente ao verbo "to chat", na
acepção que lhe o dicionário: "to converse in an easy or gossipy manner; talk
familiarly." Até os ingleses, meu Deus, os ingleses têm também o seu papo: um deles,
na mesa do bar, olha para fora e diz que vai chover; meia hora depois outro diz que não
vai chover; meia hora depois o terceiro se retira dizendo que não gosta de discussão. A
falta de graça desta velha anedota não está em ser velha, mas na finalidade útil que fez
michar o papo. Este não deve ter finalidade alguma, senão a de matar o tempo da
melhor maneira possível. É coisa de latino em geral e de brasileiro em particular: fazer
da conversa não um meio, mas um fim em si mesmo. Se não me engano, essa é a
distância que separa a ciência da arte.
No papo bem batido, a discussão não passa de uma motivação, sem intuito de
convencer ninguém, nem de provar que se tem razão. Os que nela se envolvem devem
estar sempre prontos a reconhecer, no íntimo, que poderiam muito bem passar a
defender o ponto-de-vista oposto, desde que os que o defendem fizessem o mesmo. Os
temas devem ser de uma apaixonante gratuidade, a ponto de permitir que, no
desenrolar da conversa, de súbito ninguém mais saiba o que se está discutindo. Mesmo
nas eternas discussões sobre mulher, religião ou futebol, para que se constituam em
bate-papo, longas digressões hão de ser admitidas, desde que pertinentes.
Esta última observação, aliás, é pertinente ela própria, que falei em futebol,
quando se trata de papo acalorado como o que batiam aqueles dois amigos, parados
numa esquina, violando o silêncio da rua adormecida:  
-- Se o último jogo do Campeonato fosse do Botafogo contra o Fluminense...
-- Ora, Alfredo, pra cima de mim! Ia ser de goleada.
-- Você não me deixou terminar, Dagoberto. Eu queria dizer que o Botafogo...
-- Que Botafogo que nada! Com o Vasco diziam a mesma coisa...
-- Dagoberto, você não me deixa falar!
-- ... e no entanto ele acabou entrando bem. Essa não, Alfredo.
-- Não estou falando no Vasco. Eu disse que o Botafogo...
-- E no ano passado, que foi que o Botafogo fez? Me diga o que ele fez.
-- Você não me deixa falar, Dagoberto.
-- Desde o princípio todo mundo sabia que o Fluminense...
-- Você não me deixa falar!
A essa altura abriu-se uma janela no edifício da esquina e surgiu um indivíduo
estremunhado:
-- Ô Dagoberto! Deixa o Alfredo falar!
A boa conversa implica sempre em deixar o Alfredo falar. Além disso a discussão,
ainda que gratuita, pode exaurir o papo diante de uma impossível opção, como a de
saber qual é o melhor, Tolstoi ou Dostoievski, Corcel ou Opala, Caetano ou Chico. A
menos que ocorra ao discutidor o recurso daquele outro, hábil em conduzir o papo, que
teve de se calar quando, no melhor de sua argumentação sobre energia atômica, soube
que estava discutindo com um professor de física nuclear:
-- Você é presidencialista ou parlamentarista? perguntou então.
-- Presidencialista.
-- Pois eu sou parlamentarista.
E recomeçaram a discutir.
Mais ardente praticante do que estes, mesmo o que um dia se intrometeu na
nossa roda, interrompendo animadíssima conversa:
-- Posso dar minha opinião?
Todos se calaram para ouvi-lo. E ele, muito sério:
-- Qual é o assunto?
Mas percebo que me perdi em discussões, polêmicas, argumentos e desaguisados,
afastando-me do verdadeiro espírito que deve presidir o culto dessa arte. De
preferência, que ela seja praticada apenas a dois como diz o mineiro, mais de dois é
comício. E entre estes dois, bom será que reine amável concordância, para que,  
alternada-mente ouvindo e falando, possam ambos conjugar o delicioso verbo
discretear.
De minha parte, possa eu encerrar a conversa rendendo minha homenagem a um
amigo: àquele que, no consenso geral dos que com ele privam, veio dar a esta arte o
melhor do seu talento criador.
Ao longo de minha vida tive a ventura de conviver com excelentes papos, de
Jayme Ovalle a Sérgio Porto, de Milton Campos a Mário de Andrade, para falar nos
mortos mais queridos. Não sendo privilégio de gente ilustre, tenho encontrado grandes
praticantes entre marceneiros, pescadores, garçons e choferes de táxi.
Mas nenhum como este, cuja despedida à porta de sua casa se prolonga de meianoite às quatro, deixando-nos a impressão de haver decorrido apenas meia hora; capaz
de reter-nos a noite inteira num café em pé, conversando sobre o que seja, do último
boato político à imortalidade da alma. Jânio Quadros, quando Presidente, chegou a
mandar chamá-lo a Brasília queria-o como seu assessor:
-- Soube que você gosta de bater papo. Venha fazê-lo aqui.
-- Fá-lo-ia, Presidente que língua, a nossa! se tivesse competência. Mas não
passo de um especialista em idéias gerais.
-- Eu também! exclamou o Presidente, batendo no peito. Depois, olhos
brilhantes, apontou um mapa na parede: E este Brasil inteiro entregue a nós dois!
pensou?
Tinha razão, o Presidente. E tê-lo-ia (!) levado na conversa, se as intenções
presidenciais fossem apenas as de conversar. Porque se trata do rei da conversa, o Pelé
do bate-papo, reconhecidamente o mais primoroso cultor desta arte sutil. tive mesmo
a cautela, apontando-o desde à posteridade, de compor para ele um epitáfio:
"Aqui jaz Otto Lara Resende,
Mineiro vivo, mancebo guapo.
Deixa saudades, isso se entende:
Passou cem anos batendo papo."

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